terça-feira, abril 15, 2008

Depois do Acordo, o Dilúvio

Contra o tremendismo das posições reaccionárias dos que querem ficar orgulhosamente sós, aqui transcrevo com a devida vénia :
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Meu desacordo crítico com os críticos do Acordo
por MAURO DE SALLES VILLAR *
As variedades do português de Portugal e do Brasil são muito próximas. Apesar disso, somos o único caso de língua ocidental com duas ortografias oficiais. Atente-se, porém, para o fato de que países com óbices muito maiores em suas variedades linguísticas resolveram esse gênero de problema há muito tempo.Segundo dados do Linguasphere Register of the World’s Languages and Speech Communities, o espanhol é falado por cerca de 450 milhões de pessoas (inclusive translíngües, ou seja, falantes que aprenderam duas ou mais línguas geneticamente semelhantes ou um ou mais dialetos ou variantes de sua própria língua) em 19 países, onde é língua oficial. Quarta língua mais falada do mundo, são inúmeras as suas variantes, mas os seus utentes seguem um padrão escrito comum, uniforme. Só há uma forma oficial de grafá-la.O francês é língua de cerca de 125 milhões de pessoas (inclusive translíngües) na Europa, África, América Central e Oceania. É língua oficial de 26 países. Sua ortografia é arcaísta, refletindo preocupações etimologizantes baseadas na grafia legal do francês medieval, codificado no século XVII pela Academia Francesa. É extensa a lista das suas variedades dialetais, mas só há uma forma de escrever o francês padrão em todo o mundo.O inglês é primeira língua de cerca de 1 bilhão de pessoas (inclusive uma maioria de bilíngües); é língua oficial de 47 países e a segunda língua de diversas centenas de milhões de usuários, sendo utilizada como meio de comunicação fundamental da comunidade internacional. Apesar da grande dificuldade que representa a sua pronúncia (sem regras, com grupos consonantais que podem ser pronunciados de maneiras totalmente diversas) e das diferenças entre a língua padrão da Grã-Bretanha e as formas dialetais mais importantes (Estados Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, África do Sul), "o desejo de uniformidade é tão grande que as variantes populares não são bem-vindas", anota o autor do verbete dictionary da Encyclopaedia Britannica. Há algumas diferenças gramaticais, mas o inglês é considerado uma língua una, sendo o seu padrão ortográfico basicamente o mesmo para todos, com pequenas divergências (por exemplo, centre / center, connexion / connection, gaol / jail, gaoler / jailer, kerb / curb, tyre / tire, waggon / wagon, -our / -or etc.). Além disso, a imprensa, as viagens, a música, as agências de notícias e concorrentes afins, registra o lexicógrafo, vêm contribuindo para estreitar os usos.

Na China não há um chinês, mas diversas línguas (ou dialetos, na dependência do lingüista que as estuda). Quando um chinês usa o wu ou o yüeh para falar com outro chinês da área do hakka, do min ou do mandarim, eles em geral não se entendem. Para os seus ouvidos, essas línguas soam, uma em relação a outra, mais ou menos como para nós o francês em relação ao espanhol, o português ao romeno, o italiano ao catalão, ou o espanhol ao rético ou ao provençal. Quem usa uma dessas línguas pode não ser capaz de entender o que o outro diz, quando lhe falam em outra dessas línguas, uma vez que há grande número de diferenças entre elas tanto na pronúncia quanto no vocabulário. Mas todos os chineses escrevem suas línguas utilizando uma mesma convenção que é comum a todos. Antes utilizavam o chinês literário para isso. No início do século XX, surgiu um programa de unificação da língua baseada no mandarim, de que resultou o moderno padrão chinês dito kuo yü ‘língua nacional’ ou p’u-t’ung-hua ‘língua comum’. Ortografia é a representação dos sons da linguagem por meio de símbolos escritos ou impressos. Ela é normativa, com prescrição de regras, mas as suas formas, apesar de sempre dependerem de uma história pregressa, são convencionais. Por isso, pode ser modificada, modernizada e utilizada por grupos dialetais diferentes dentro de uma língua – da mesma forma que os alfabetos podem servir a línguas diferentes de uma mesma família ou até a línguas de famílias diversas.Vejam-se os seguintes exemplos. O árabe é hoje a língua utilizada total ou prevalentemente em 21 países por cerca de 250 milhões de pessoas, informa o citado Linguasphere. Claro que estas não se expressam no mesmo árabe. A língua falada divide-se num bom número de diferentes dialetos, que se grupam basicamente em três grandes áreas, uma oriental, uma ocidental e uma central. É fácil de imaginar a sua diversidade. Isso não obstante, a língua oficial dos meios de comunicação de massa em todo o mundo árabe é uma só, escrita do mesmo modo (o árabe moderno unificado ou comum), compreensível em todos os países islamitas ou onde o árabe seja falado, e por todos os seus leitores. E a escrita árabe é também utilizada pelo urdu e pelo persa; o turco e o malaio usaram-na por longo período, e até o espanhol, no passado, foi transcrito em caracteres arábicos.A escrita cuneiforme, inventada pelos sumérios, foi adotada por assírios, babilônios, persas, elamitas, hititas etc., servindo de registro para variadas línguas basicamente diferentes, por vezes nem indo-européias nem semíticas (o churrita, por exemplo). Na escrita devanágari, escrevem-se o sânscrito, o hindi, o marata e o nepáli, assim como algumas línguas não indo-européias. Os exemplos seriam variadíssimos, mas vou deter-me por aqui.Se tantos e tão diversos povos, com óbices lingüísticos tão maiores do que os nossos, conseguiram grafar as suas línguas por um padrão único, por que não Brasil e Portugal, com usos tão próximos?Sou absolutamente favorável a um acordo e espanto-me de que não tenhamos sido capazes de resolver essa questão debatida há tanto tempo. Também tenho objeções pessoais ao presente Acordo, mas ele foi o único passo efetivo conseguido em praticamente quase cem anos de parlamentações sobre uma ortografia comum. O seu texto atual resolve algumas questões e não soluciona a contento outras, mas foi aquilo a que se logrou chegar em 1990, sob o peso da saraivada de críticas e dos mais diversos pontos de vista de gente que era especialista no assunto e de outros nem tão especialistas assim. Acordado o texto que aí está, fica aberto o caminho para aperfeiçoamentos conjuntos futuros, alguns dos quais até já propostos em fases anteriores das discussões e que não puderam se integrar ao texto atual assinado. O caso do acento das proparoxítonas é um deles. A proposta de sua extinção foi derrubada pela ironia de uma frase bem achada, algo como no meio do jardim havia um cágado (ou coisa que o valha). O ridículo fez submergir a sugestão diante da dúvida sobre o seu sentido real em que se acharia quem a lesse sem o acento. Mas as coisas se passariam exatamente assim? Essa é uma frase solta no ar, sem contexto. Em inglês, o sentido de uma sentença ingênua do tipo there is a big cock in my little box só pode ser percebida exatamente se o seu contexto, do mesmo modo, for conhecido. Sem isso, como saber se se estaria a falar de animais e caixinhas ou de outras coisas? O inglês, aliás, nem seria preciso lembrar, é uma língua sem acentos, em que se precisa conhecer a pronúncia de cada palavra antes de articulá-la. Daí a célebre história do vocábulo ghoti aventado por Bernard Shaw, que se poderia ler fish se seu gh soasse como o gh de laugh, seu o soasse como o de women, e seu ti tivesse o som que tem em palavras como notion. Os dicionários e vocabulários ingleses registram sempre a pronúncia ou as pronúncias, no caso de haver mais de uma, de cada entrada e isso nunca foi obstáculo para que um bilhão de pessoas falem e se entendam em inglês.A questão do hífen é outro problema cuja solução foi proposta, mas soou demasiado revolucionária para aquela época. Voltou-se atrás e ele continua a ser um descomunal problema para quem escreve. Isto, todavia, são questões contornáveis no futuro e o que precisamos é pôr em movimento a locomotiva do Acordo. Parodiando o mesmo Bernard Shaw, poder-se-ia dizer que Portugal e o Brasil são dois países separados pela mesma língua, no que tange à ortografia. Todos concordamos que o atual Acordo não se consubstancia numa consecução perfeita, não deve ser considerado o ideal ortográfico último do português. É, porém, como disse, o primeiro passo conseguido num século de tentativas de aproximação e parlamentações baldadas. Foi o que foi possível fazer-se. Ir mais longe naquele momento, no dizer de Lindley Cintra, seria criar novos problemas. Comecemos então mais humildemente, para procurarmos aprimoramentos depois de vencida a inércia imobilista. Quando foi que aperfeiçoar a grafia da nossa língua comum seria dilapidar algum patrimônio cultural? A ortografia é uma convenção e deve ser sempre retocada, aprimorada. As alterações hoje propostas talvez não cheguem nem a 5% da língua como um todo, o que é muito pouco.E como anda a lusofonia? Segundo o Linguasphere, o português é a sétima língua mais falada do mundo, com 200 milhões de usuários. É língua oficial em São Tomé e Príncipe, Cabo Verde, Guiné-Bissau. Moçambique etc. Mas em São Tomé e Príncipe, que tem cerca de 130 mil habitantes, e em Cabo Verde, com cerca de 450 mil, a língua materna e dominante não é o português, mas sim o crioulo. O mesmo ocorre, em sua variedade local, na Guiné-Bissau, que, além do seu crioulo específico, utiliza também outros idiomas africanos, falados pela maioria da população. Em Moçambique, talvez 30% da população hoje estejam falando o português, mas esse país aderiu à Commonwealth em novembro de 1995. Além disso, à francofonia aderiram a Guiné-Bissau (dezembro de 1979), São Tomé e Príncipe (dezembro de1995) e Cabo Verde (dezembro de 1996). Em Macau, menos de 3% da população são lusófonos. O peso maior do uso de nossa língua, portanto, permanece com o Brasil, Angola, com 11 milhões e meio de habitantes, e Portugal, hoje com pouco mais de 10 milhõesCelso Cunha registrou no seu Língua portuguesa e realidade brasileira (Rio, Tempo Brasileiro, 1970) que o objetivo da unificação ortográfica é preservar a “unidade superior da língua portuguesa”. Não estamos interessados nisso? Ou seremos incapazes de nos entender para dar o passo necessário em direção à unificação ortográfica da língua, providência há tanto tempo levada a efeito por outros povos com maiores problemas lingüísticos?Não fazem sentido as conhecidas insurgências contra o processo de encaminhamento de solução à incômoda dicotomia ortográfica, pois representantes dos Governos das Repúblicas de Portugal, Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste, reunidos em São Tomé, assinaram, em 25 de Julho de 2004, uma resolução segundo a qual o Acordo Ortográfico da Língua passaria a vigorar com o terceiro depósito de instrumento de ratificação junto da República Portuguesa – facto que já se deu. O que ainda se está a discutir? Se iremos mais uma vez roer a corda e descumpri-lo? Já vimos esse filme em 1945 e ele não é bom. Seremos nós, portugueses e filhos culturais dos portugueses, realmente incapazes de nos organizar numa questão nem tão intransponível assim?*
Mauro de Salles Villar é co-autor do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa e membro da Academia Brasileira de Filologia

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