Análise imperdível de Miguel Sousa Tavares, no Público:
«Mário Soares - como ele próprio não se cansa de recordar, a título de prova de vida - passou estes dez últimos anos sem resguardo algum: fez uma fundação, foi deputado europeu, publicou dez livros (!), viajou, fez conferências, palestras, presidiu a comissões, desfilou contra a Guerra do Iraque.
"Puf!" - suspira Cavaco Silva, com desdém, ao relembrar as andanças do seu rival -, "um político profissional no seu pior!" Ele, Cavaco, fez o inverso: tratou de acabar a sua vida académica tranquilamente, publicou um livro, após sair do governo e onde inventariou as "reformas de uma década", que jura ter feito, mas que, curiosamente, são hoje universalmente reconhecidas como as mais urgentes ainda por fazer, e reservou-se para ocasionais aparições públicas, sempre devidamente publicitadas pelos inúmeros homens-de-mão que deixou semeados pela imprensa e sempre recebidas pela pátria como verdadeiros textos de referência, senão mesmo de culto.
Soares falou tanto nestes dez anos que não nos lembramos de coisa alguma marcante que tenha dito. Cavaco falou tão pouco que, para a história, ficou apenas aquela frase dos tempos de governação de Santana Lopes de que "a boa moeda deve afastar a má". Foi um pensamento profundo e corajoso: antes dele, ninguém ainda tinha pensado numa coisa dessas e ninguém ainda se tinha atrevido a questionar os méritos governativos de Santana Lopes e do seu extraordinário séquito. Disse também outra coisa (hoje convenientemente apagada dos registos pelos seus fiéis), estava a sua amiga Manuela Ferreira Leite a tentar controlar o despesismo público e os défices suicidários do Estado: disse que o que era preciso eram políticas keynesianas, de "contraciclo" e acrescidas despesas públicas.
Há dez anos que todos sabíamos que Cavaco voltaria a candidatar-se à Presidência da República, assim que Jorge Sampaio desimpedisse o caminho - porque, tirando o inevitável holocausto de 95, contra o mesmo Sampaio, e a que não tinha maneira de se furtar, ele sempre foi homem dos combates com vitória assegurada à partida. Este seu novo e ridículo tabu com as presidenciais, este patético arrastamento da notícia formal da candidatura, quando já tudo estava pensado ao pormenor e ele ainda fingia estar em reflexão, só serviu para demonstrar duas coisas: uma, que Cavaco conhece e usa todos os truques da política, que afecta desdenhar; outro, que entre os seus truques preferidos está a gestão do silêncio, até ao limite do possível.
Não há lugar mais político do que a Presidência da República. É um lugar destinado exclusivamente a fazer política, não a governar ou a fazer obra. É por isso que a candidatura de Cavaco Silva gera tanto desconforto, tanta desconfiança e tanta insegurança em tanta gente: porque quem se candidata ao cargo se afirma, pessoal e estruturalmente, contra a própria natureza dele e, por conseguinte, nos deixa a tentar adivinhar que agenda secreta será a sua, uma vez na Presidência.
Sempre foi assim, também, nos seus dez anos de governo. Cavaco Silva sempre desprezou as ideias políticas, o debate, a ideologia, a agenda, a definição de um horizonte ou de um projecto para Portugal. Quando questionado, respondia com os 1400 quilómetros de estradas novas, os 210.000 carros comprados, as 600.000 criancinhas nascidas durante os seus anos de esplendor. Nunca aceitou debates, nunca perdeu tempo com o Parlamento, nunca se submeteu a entrevistas difíceis. Quando precisava de cuidar da imagem ou da mensagem, reservava-se para entrevistas exclusivas na televisão pública com o seu conselheiro de imagem ou com a sua adida de imprensa. Assim criou o mito do homem infalível, demasiado ocupado a resolver os problemas do país para se desgastar em explicações avulsas ou na inútil encenação democrática.
Para essas tarefas menores, Cavaco contou sempre com um fiel exército de "guardas da revolução", que hoje reemergem outra vez à superfície, tal como, diga-se em abono da verdade, reemergem os cortesãos de Soares. Uma das especialidades de Cavaco Silva foi sempre a de dar homens por si. Se Cavaco nunca teve uma ideologia nem sentiu necessidade de a ter, o cavaquismo teve-a.
Para quem já esqueceu ou finge ter esquecido, convém relembrar o que era a substância intelectual e política do cavaquismo. O mesmo Cavaco Silva que hoje se afirma contra a partidarização do aparelho do Estado, foi o primeiro-ministro que inaugurou a moda recente de distribuir todos os cargos públicos (excepto os das "forças de bloqueio", que se lamentava de não conseguir controlar) pelos fiéis do partido e do chefe, enquanto ele, como escreveu o seu fiel António Pinto Leite, afectava dedicar-se unicamente ao "culto solitário e obsessivo do interesse nacional". Enquanto o próprio Cavaco Silva se vangloriava de ter "devolvido Portugal ao mundo" e se gabava de ter feito de Portugal um "oásis" de progresso no meio da decadência do mundo, os seus fiéis ocupavam, sem pudor nem temor, todos e cada um dos cargos do Estado, das empresas públicas, das sinecuras regionais. Na RTP, totalmente governamentalizada, Roberto Leal, vestido de minhoca branca, pulava e saltava, cantando o refrão "nós já temos Cavaco e maioria" - antes mesmo das eleições. E o ministro Fernando Nogueira, então "número dois" e delfim do cavaquismo, explicava candidamente que não havia ocupação alguma do aparelho de Estado, já que ele não conhecia "um génio, uma pessoa invulgarmente dotada, que não esteja ocupada". Ele, por exemplo, estava apenas "muito empenhado em dar a sua contribuição individual para um projecto colectivo protagonizado pelo Professor Cavaco Silva... numa unidade ideológica que causa inveja aos adversários". Porque tudo se resumia a essa tarefa patriótica da unidade ideológica e serviço ao chefe, como ensinava aos deputados do PSD o líder parlamentar da maioria de então, Montalvão Machado: "Uma das prioridades dos deputados sociais-democratas deve ser a promoção da imagem de Cavaco Silva." Eram os tempos, recordo, em que o primeiro-ministro, Cavaco Silva, abria o telejornal da RTP, então estação única e pública, para declarar: "Estou em condições de dizer aos portugueses que o preço da gasolina vai baixar quatro escudos por litro." E eram os tempos, também, em que o mesmo primeiro-ministro propunha uma Lei do Segredo de Estado, felizmente abandonada, em que os aumentos de preço dos combustíveis, dos impostos, das taxas de juro e "outros rendimentos do Estado", bem como a contracção de empréstimos por parte da República ou das Regiões Autónomas, passariam a constituir matéria abrangida pelo segredo de Estado. Assim ia a democracia, nos gloriosos tempos de então.
E é por isso que, lembrando-me de coisas de então, agora que, segundo as sondagens, Cavaco Silva se prepara para ser meu Presidente da República nos próximos dez anos, eu acho que chegou a altura de lhe exigir o fim do silêncio conveniente. Gostaria de saber o que pensa ele de Portugal: da justiça, da educação, da desordem territorial, da reforma da administração pública, da regionalização, do aborto, da Ota e do TGV. E o que pensa do mundo: do Iraque, do combate ao terrorismo, das relações com os regimes corruptos de África, da imigração, da adesão da Turquia à Europa, da deslocalização de empresas, da futura guerra contra o Irão. Numa palavra, gostaria de saber que ideias tem ele, o "não-político", sobre a política. Será pedir de mais a quem quer ser Presidente da República?
P.S. - Nos tempos do "Grande Ceausescu", andava em reportagem pela Roménia e pedi uma entrevista ao ministro dos Estrangeiros. Responderam-me que as perguntas só por escrito, previamente, e as respostas só por escrito, posteriormente. O mesmo sistema acaba agora de ser instaurado na Câmara do Porto pelo dr. Rui Rio. Gostavam muito da "maneira de fazer política" dele, não gostavam? Pois agora aprendam!»
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