segunda-feira, setembro 22, 2008

Gadus Macrocephalus Pacificus


Por volta de 1990 um amigo meu foi aos confins da Sibéria, a um porto numa cidade de que não recordo o nome, mas que além de bairros sociais de pescadores e de uma imensa frota pesqueira nada mais tinha. Não tinha luz nas ruas, as mesmas não tinham sido alcatroadas, passeios , nada. Uma cidade construída de raíz para instalar uma frota de pesca e barcos de guerra. Dizia o meu amigo que a vodka corria mais que a água nas canalizações que gelavam todas as noites, Nada parecia ter sido acabado ou conservado. As casas há muito que não sabiam dizer a cor. Os barcos imensos tugúrios onde as tripulações engorduradas e alcoolizadas há muito que não iam ao mar.

Era o início do fim da economia planificada. Mas perguntaram-lhe ao que ia. Ia ver se comprava bacalhau do Pacífico. Haveria por lá? Um tal Gadus Pacificus?

Convidaram-no a jantar e a sair noite escura, num daqueles monstros metálicos, vermelhos de tanto socialismo e ferrugem e que tinham servido para pescar ao arrasto.

Duas horas de mar, um frio de tolher, e lançaram as redes. Mais meia hora, e começaram a recolhê-las. O António perguntou se tinham desistido de lhe mostrar o tal bacalhau. Não tinham desistido. A pesca estava era feita. Quando o saco da rede foi içado trazia mais de uma tonelada de bacalhau de grande tamanho. Ao preço daquela época seriam para cima de mil contos, uma vez aberto e salgado. E agora? perguntou-lhe o chefe do barco. Sem dúvida, temos negócio! Como é que podemos estabelecer um contrato de fornecimento?

Não podemos, disse-lhe o pescador. As mais das vezes não temos gasóleo para sair e quando temos gasóleo, não há luz para o congelador, e se houver luz no congelador como é que lhe fazemos chegar o peixe? Aqui não vem nenhum barco frigorífico nem temos ninguém interessado na indústria do peixe.

Mas, se eu vos enviar o sal?

Não temos salgadeiras, nem mão -de-obra para tratar do peixe.

O António desistiu , e naquela noite assistiu ao lançamento ao mar daquela tonelada de bacalhau que não tinha qualquer interesse para os pescadores da Sacalina. Comiam pouco peixe. Preferiam carne de porco.

A que propósito vem esta recordação do socialismo real?

Destoutra que apanhei por ai!:

O “Banco de Horas” no novo Código do Trabalho, é uma figura que não me escandaliza absolutamente nada. Há já mais de 10 anos que o pratico na empresa onde trabalho com evidentes benefícios para ambas as partes. Quando chegam as férias, em vez de 25 dias, temos 30 ou 35; se necessitar de um dia qualquer do mês – mesmo que uma segunda ou sexta-feira – no problem. Mas não é só isso que me trás aqui.

Não é só pela mão-de-obra barata que se cria riqueza; não é só a mão-de-obra barata que atrai investimento.

Quando era criança, Setúbal era a cidade da indústria conserveira. Fui criado num bairro rodeado de fábricas de conserva. Um barco carregado de peixe podia chegar a que horas chegasse: às cinco da tarde, às nove da noite; às três da manhã; a um sábado ou a um domingo. Tocavam as sirenes nas fábricas a chamar, e toda a gente acorria para a labuta; enquanto houvesse peixe para tratar. Podia-se trabalhar 24, 48 horas seguidas, as que fossem necessárias até dar conta do recado, e depois ficar outras tantas em casa à espera de novo barco.

Setúbal, a par do Algarve, tinha a melhor conserva de peixe do mundo e arredores. E exportava.

Com a Revolução de Abril, surgiram os contratos colectivos de trabalho, e os trabalhadores conserveiros, apesar da especificidade do sector, acharam que deviam ter um horário de trabalho “como toda a gente”. De segunda a sexta; das 8 às 13, das 14 às 18. Um barco que chegasse à Doca do Comércio, por exemplo, numa sexta às cinco da tarde, tinha o destino traçado: o pessoal na fábrica largava às seis, e só tornava a pegar na segunda às oito. Peixe borda-fora. Prejuízo para o armador; prejuízo para o dono da fábrica.
Em menos de um foguete as fábricas deslocalizaram para Marrocos. Desemprego e miséria em Setúbal.

Pronto. Podem chamar-me reaccionário.

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